Poucas coisas no processo de criar filhos gera tanto burburinho entre familiares e amigos e causa tanto estresse nos pais quanto o desfralde. Infelizmente a maioria de nós continua repetindo o modelo recebido nem sempre correto, desconhecendo as evidências sobre o assunto e desrespeitando em muitos casos o tempo da criança de abandonar as fraldas. Eu tinha a consciência de que esse tempo certo existia e precisava ser respeitado. Porém, desconhecia a fundo o processo de controle de esfíncteres e tudo o que ele envolve. Por essa razão, sofri desnecessariamente enquanto esperava o desfralde definitivo do meu filho mais velho.
Um breve relato
Embora o desfralde diurno do Fernando tivesse acontecido ao redor dos 3 anos, o desfralde total só aconteceu quando ele estava com 4 anos e 4 meses. Por causa do cocô que ele se recusava a fazer no vaso. E vejam só, tudo estava dentro da normalidade e eu havia sofrido em vão. Encontrar este texto da Laura Estremera Bayod (que compartilho a seguir) foi um bálsamo. E a experiência posterior com o desfralde dos gêmeos foi super tranquila, no tempo deles, conduzido por eles, sem pressa, sem neuras. O Matias desfraldou total ao 2 anos e meio, com intervalo de poucas semanas entre diurno e noturno. Beatriz desfraldou diurno junto com o irmão e noturno 4 meses mais tarde. Cada criança é única. Transcrevo a seguir a tradução que fiz do texto e que inclui as referências bibliográficas. Leia até o final. Vale muito a pena!
Controle de esfíncteres: \”remover a fralda\” ou \”abandonar a fralda\”?
Hoje temos muitas informações sobre o funcionamento do sistema nervoso, também sabemos muito mais sobre o sistema emocional e suas consequências. Não obstante, há momentos em que em vez de usar todo esse conhecimento para entender a criança e poder acompanhá-la em seu desenvolvimento. Continuamos usando dicas antigas que não levam em conta esses aspectos, sendo algumas inclusive prejudiciais. Parece fácil que uma criança deixe de usar fralda, mais cedo ou mais tarde ela aprenderá a controlar seus esfíncteres. Mas cabe a nós respeitar esse processo ou tentar acelerá-lo. E, portanto, a criança vai viver esse processo de uma forma ou de outra.
▶ O que é controle de esfíncteres?
Chama-se de controle do esfíncter saber identificar quando você tem vontade de fazer xixi ou cocô e pode controlar sua saída até que esteja em um local adequado para fazê-lo. Isso parece fácil, certo? Porém algo que os adultos acham tão simples, envolve mecanismos neurológicos, motores e emocionais que devem funcionar de forma coordenada.
Quando um bebê nasce este sistema não é maduro. Então, colocamos uma fralda no bebê. Depois ele começa a se desenvolver seguindo duas leis: a céfalo caudal e a próximo distal. De acordo com a primeira, a criança amadurece de cima para baixo, da cabeça aos pés. Por isso, ela poderá sustentar sua cabeça bem antes de andar. Quando a bexiga ou o reto estão cheios, essa informação atinge a parte sacral da medula espinhal, ou seja, uma área muito baixa da coluna vertebral. Para que possamos entender que é um processo que não estará entre os primeiros a aparecer.
Por outro lado, o esfíncter voluntário precisa amadurecer (temos 2 esfíncteres, um interno, involuntário e outro externo e voluntário). Esse músculo precisa amadurecer para que a criança possa contrair, fechar e decidir reter sua saída até chegar ao lugar certo para fazê-lo. E falamos de maturação e não de aprendizado, porque não podemos ensinar-lhe como fazer tudo isso. Assim como não podemos ensinar o que deve fazer para secretar certos hormônios.
A importância da maturação cerebral no processo
O cérebro também tem um grande papel neste processo, entre outras coisas, é responsável por decidir quando fazer xixi e quando não, tomar conhecimento do corpo, quando avisar. Mas o cérebro humano não está maduro no nascimento, ele se desenvolve de baixo para cima, de dentro para fora e de trás para frente. Portanto, a parte do córtex que decide, que inibe fazê-lo se não for adequado e que avisa é a última a amadurecer. Porque está na parte mais externa do cérebro, e para que a informação chegue da bexiga (notar que está cheia) até o cérebro deve subir através da medula espinhal, através do cérebro inteiro de baixo para cima para chegar ao córtex.
No meio do cérebro está o sistema emocional do ser humano, de modo que toda a informação dos esfíncteres e sua experiência passa pelas emoções antes de chegar ao córtex, daí o porquê é de extrema importância como a criança vive o processo de controle do esfíncter (se ela for repreendida, se for forçada, se sofrer comparação, se sentir dor) essas emoções serão gravadas no cérebro e é como ela vai vivê-la nas próximas vezes. Também nos permite entender que ante certas circunstâncias que afetam a criança emocionalmente estas podem levá-la a voltar a fazer xixi, cocô (como o nascimento de um irmão, mudar de escola, etc.). Uma vez que a informação chega ao córtex, ela volta para a medula até a bexiga.
Além da maturação fisiológica, é necessário algo mais: a criança querer fazê-lo. Com a informação que temos hoje, vemos que o controle de esfíncteres é muito mais complicado do que simplesmente sentar a criança em um vaso sanitário em determinados momentos e que é um processo de maturação e não de aprendizado.
▶ Quando se aprende a controlar os esfíncteres?
À medida que a criança cresce, seu sistema nervoso amadurece, mas nem todas as crianças amadurecem ao mesmo tempo. É um processo que precisa de tempo e que apresenta múltiplos avanços e contratempos.
Como as crianças nascem em todos os meses do ano e cada uma amadurece a seu próprio ritmo, haverá crianças que deixarão a fralda no verão, outras no outono, outras na primavera e outras no inverno. É costume esperar o verão para \”remover a fralda\”, mas se uma criança estiver pronta, ela molhará pouca roupa e isso parece ser o único motivo porque esta temporada é esperada.
Em relação à idade, depende de cada criança e a margem é muito ampla, geralmente é estabelecido que esta maturação de que falamos aparece entre 18 meses e 5 anos. De acordo com Schore (1996) \”até 18 meses ou mais, a criança não tem amadurecidas as conexões entre o cérebro, o sistema nervoso autônomo e os músculos do esfíncter que lhe permitem tornar-se consciente de seus estados corporais internos e voluntariamente controlar a evacuação de fezes e urina\”.
Villamarín em seu livro Cirurgia Pediátrica, afirma: \”Aos quatro ou cinco anos de idade, o reflexo da micção deve ser totalmente integrado no córtex central. A criança agora está ciente do desejo de urinar, bem como possui a capacidade de iniciar, interromper ou adiar a micção pela contração da musculatura voluntária e relaxamento do detrusor\”.
Quando devemos desconfiar que há um problema
De acordo com o DSM IV, que é o manual utilizado por clínicos e pesquisadores nas ciências da saúde para diagnosticar diferentes transtornos mentais, se estabelece desordem de eliminação quando uma criança não controla fezes após 4 anos e urina a partir de 5 anos; chegada essa idade é quando se deve fazer uma avaliação do caso (o que não significa que haja um problema). De acordo com a Academia Americana de Psiquiatria é completamente normal não controlar os esfíncteres até as idades indicadas.
▶ Como sabemos se elas estão prontas?
As crianças começam a dar sinais de que estão amadurecendo, mas não devemos cair no erro de confundir esses sinais com que a criança já está preparada e controla esfíncteres.
Alguns desses sinais são:
- Percebe o que estamos fazendo no banheiro (desde que nos vejam), isto é, tem curiosidade.
- Remove e abaixa a roupa.
- A fralda está seca.
- Quer sentar no vaso ou no penico.
- Ela se esconde para fazer cocô (como os adultos).
- Ela começa a dizer que tem xixi ou cocô depois de fazê-lo (que ela tenha consciência não indica que ela controle os esfíncteres), então ela começa a nomeá-lo quando faz e finalmente aprende a avisar antes.
- Geralmente, elas primeiro aprendem a controlar o cocô noturno, depois durante o dia, seguido do controle diurno do xixi e, finalmente, controle noturno da urina.
E o controle de esfíncteres à noite?
O controle da urina noturna é diferente do diurno e é devido a um hormônio do ADH, é um mecanismo diferente e mais lento.
▶ O que podemos fazer?
A primeira coisa a ter em mente é como a criança se desenvolve. Muitas vezes, o melhor seria não fazer nada, a criança aprenderá porque é uma questão de maturidade. Nenhum adulto saudável faz xixi ou cocô nas calças, o que significa que o ser humano como espécie controla os esfíncteres.
Existem muitas técnicas para conseguir isso, algumas mais precisas do que outras. Porém, a verdade é que, independentemente do que façamos, a criança a longo prazo acabará por controlar os esfíncteres. No entanto, como ela viveu esse processo, e as repercussões que ela terá a longo prazo (ou mesmo a curto prazo) por conta disso, é o que diferencia algumas técnicas das outras.
Dicas do que podemos fazer
- Explicar o que é o penico e para que serve (a criança não é um adivinho).
- Deixá-las nos ver quando vamos ao banheiro, com naturalidade (desde que não nos incomode). Todos nós fazemos xixi e cocô, é uma necessidade do nosso corpo como o é comer. Então devemos vivê-lo como algo natural, evitando comentários do tipo \”Eca, que nojo\”.
- Permitir que conheça seu corpo e o explore. Primeiro elas precisam conhecer a si mesmas para poderem entender no outro.
- Especialmente quando são bebês, permitir a liberdade de movimento. Não colocá-los em posições que eles não consigam por si mesmos, não sentá-los até que o façam sozinhos, não colocá-los em pé. Evitar o uso de cadeirinhas de balanço, dispositivos que não os deixem mover-se livremente. Os movimentos e posturas que eles descobrem por si sós são o que lhes permitirá tonificar seus músculos e não forçá-los. A pressão sobre o assoalho pélvico é excessiva quando os músculos não estão bem tonificados.
- Pôr em palavras o que acontece.
- Chamar as coisas pelos seus nomes. Se dizemos que o que sai do bumbum é \”caca\”, o que está no chão deve ser sujeira. Não podemos dizer a uma criança que a caixa amassada no chão na rua é \”caca\” e depois dizer \”nós vamos ao banheiro para fazer caca\”.
- Deixar que perceba o que acontece sem estar de fralda.
- Vesti-la com roupas confortáveis.
- Aceitar seus retrocessos como parte do processo. Haverá dias ou semanas em que mostrará muito interesse e, então, parecerá que já não lhe importa. Haverá crianças que controlam o xixi, mas que irão pedir para colocar a fralda para fazer cocô. Crianças que fazem uma vez no penico, mas não farão novamente por meses.
Dicas do que não devemos fazer
- Não comparar.
- Não repreender, não castigar, não ridicularizar, mesmo que seja de forma sutil. \”Você deixou escapar de novo!\”, \”Tão grande e de fralda\”, \”A fralda é para os pequenos\”. Lembre-se de que a informação desse processo passa pela sua parte emocional e essa é a experiência do processo.
- Não forçá-lo a sentar-se no vaso.
- Não usar punições, nem prêmios, pois eles são o outro lado da mesma moeda em que os mecanismos de motivação extrínseca são postos em prática. Se o processo consiste em que a criança seja capaz de perceber que ela tem vontade e então ir ao banheiro para fazer xixi ou cocô, não faz sentido ser recompensada de fora por um processo interno. Se ela não controla, não é porque não quer, é porque não pode. Aqui entram os adesivos com carinhas sorridentes, as coleções de fichas (placas com adesivos que são preenchidos de acordo com as vezes em que conseguem e, no final, um prêmio é dado), bem como os penicos musicais. Alguns podem pensar que uma recompensa não seja apropriada, mas que seja correto que nos mostremos tristes ou felizes dependendo de se eles o fazem em um lugar ou outro. Porém, lembramos que o controle de esfíncteres é um processo interno que precisa de uma motivação intrínseca que vem da própria criança, que ela não deveria fazê-lo para nos agradar (para não mencionar como isso afeta a experiência emocional do processo).
▶ Quem está no controle?
Se a criança controla, ela controla. Se ela controlar e usar uma fralda, ela chegará a um banheiro e vai tirá-la como se fosse uma calcinha ou cueca, pois não vai querer fazer nas calças. (Isso pode ser testado colocando uma fralda em uma criança de 7 ou 8 anos e observando se ele prefere fazer nas calças \”porque tem uma fralda\” ou se vai preferir ir ao banheiro.)
- Enquanto ela estiver brincando, não haverá escapes
- Não vai dizer que não fez quando tiver feito.
- Não precisamos estar perguntando de hora em hora se ela quer fazer.
Se a criança estiver consciente de seu corpo, ela poderá controlar. Se somos nós os que a sentamos a cada hora com a esperança de que algo saia (e não a levantamos dali até que saia), se somos aqueles que constantemente perguntamos se ela quer fazer, somos nós que controlamos seu corpo, não permitindo à criança estar ciente, sentir e controlar; e não esqueçamos que o objetivo é que a criança controle seus esfíncteres, não nós por elas.
É verdade que, se assumirmos o controle, é \”mais rápido\” e podemos até \”remover a fralda\” (o que não é o mesmo que abandonar a fralda) de crianças bastante pequenas. Mas devemos estar conscientes de que, neste caso, a criança não controla os esfíncteres. Nós a estamos \”treinando\”, estamos fazendo uma relação entre \”sentar no penico = cocô ou xixi\” ou \”estar sem roupas = cocô ou xixi\”. Porém, ela não está estabelecendo um relacionamento entre \”como eu me sinto = cocô ou xixi\”. Não nos enganemos, neste caso a criança não controla nada, é o adulto quem o faz.
E se eu retirar e a coisa não estiver indo bem?
Há uma lenda que diz que se você tirar a fralda você não pode voltar a colocá-la, e eu gostaria de saber o motivo.
Se percebemos que nos apressamos, que a criança ainda se suja, que se não a \”sentarmos\” no penico ela faz nas calças, que \”não pede\”, sempre podemos voltar a colocar a fralda, não há nada de errado em corrigi-lo.
▶O que acontece se não respeitarmos o processo?
Além de todo o envolvimento emocional, tanto da criança (elas o vivem com prazer ou angústia?) quanto dos pais, em crianças que tiveram suas fraldas \”removidas\” antes de estarem prontas, que ficaram sentadas em um penico a cada X horas, que não tiveram permissão para ouvir o corpo e senti-lo, podemos encontrar problemas tanto a curto quanto a longo prazo.
A curto prazo, podemos encontrar o medo de fazer cocô, o que a leva a segurar, a sentir dor quando defeca e, portanto, a problemas de constipação. A longo prazo, se associou em meninas que tiveram suas fraldas removidas antes de estarem prontas, problemas para manter relações sexuais prazerosas quando adultas. Às vezes, são crianças que, em vez de \”controlar seus esfíncteres\”, aprendem a fazer força para reter e segurar seus esfíncteres.
Por outro lado, temos que pensar sobre o maravilhoso tempo de brincadeiras e aprendizado que uma criança sentada em um penico perde enquanto espera por \”algo sair\”, se ela controla ela não precisa esperar. É quando o controle se torna um hábito.
▶ O que acontece com o tempo?
O controle dos esfíncteres é um processo que leva tempo para permitir que os sistemas amadureçam, mas nós realmente temos tempo e damos o tempo necessário para que a criança controle os esfíncteres?
Costumamos falar sobre dar tempo à criança, mas aqui na Espanha, quando o verão dos 2 anos se aproxima, começamos a nos apressar e esquecemos que o processo precisa de tempo. Por que? Porque geralmente não podem entrar na escola com fralda (no caso de escolaridade aos 3 anos. Na Espanha, não é obrigatório fazê-lo até os 6). O motivo? Porque uma norma criada pela sociedade teve mais peso do que ter em conta a fisiologia da criança. Haverá uma grande parte das crianças que irão controlar, mas também uma porcentagem que não será capaz, Sanchez e cols (1983) estabelecem que 21,1% das crianças espanholas aos 5 anos têm enurese, Font (1985) estabelece 16, 5% . Até 5 anos é normal que a criança não controle os esfíncteres (já vimos acima nos critérios da APA).
Conclusão
Por que exigimos algo que vai contra a natureza? Será que pensamos que todas as crianças ganham o primeiro dente aos 5 meses? O que podemos fazer? Lutar contra a natureza ou colocar meios? Se entendemos o processo, se entendemos a criança, talvez seja hora de exigir mais assistentes nas escolas para que a criança que precisa possa ir de fralda e não acelerar processos que comprovadamente tem consequências a curto e longo prazo.
Estamos indo contra a natureza quando deveríamos ir contra crenças infundadas e normas sociais sem base.
A criança saudável acabará controlando os esfíncteres antes ou depois. Temos o comando sobre como ela pode viver esse processo. Talvez se começássemos a falar sobre \”abandonar a fralda\” em vez de \”remover a fralda\”, começaríamos a entender que é um processo de amadurecimento que depende da criança e não do adulto.
Por Laura Estremera Bayod, professora de audição e linguagem, técnica superior em educação infantil, autora de Criando.
Tradução* de Gabrielle Gimenez @gabicbs
* Publicada originalmente na minha conta do Facebook em 15 de março de 2018.
Referências:
Villamarín, J.M. (2005) Cirugía Pediátrica. Díaz de Santos.
Contreras, N. (2013) Manual para la exploración neurológica de las funciones cerebrales superiores. Manual moderno.
Campo, M. E. (2002) Dificultades de aprendizaje e intervención psicopedagógica. Sanz y Torres. Madrid.
Ramos, C; Martínez, E. (2000) Bases neurológicas de la continencia urinaria. Clínicas urológicas de la Complutense, 8.UCM.
Sadurni, M. (2008) El desarrollo de los niños paso a paso. UOC
González, C. (2012) Bésame mucho. Temas de hoy. Madrid
Jové, R. (2009) La crianza feliz. La esfera de los libros. Madrid.
http://los100lenguajes.com/aspectos-neurologicos-de-dejar-el-panal/
Excelente texto. Sou pedagoga e acho que a faculdade deveria falar sobre essa questão e muitas outras do universo infantil pois só fui aprender muitas coisas depois de me tornar mãe. Todo esse aprendizado teria sido precioso na minha profissão desde sempre. Obrigada Gabi.
Verdade, Gisele, isso seria maravilhoso. Ainda bem que a maternidade nos amplia a visão e nos dá um olhar sobre a criança que pode nos levar a ser melhores profissionais nas mais distintas áreas. Aos poucos vamos transformando o mundo.